Esta edição do “Estado do Mundo 2002” chega em momento significativo para nós, brasileiros. Em 2002, celebramos os dez anos da histórica Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o que será marcado por nova reunião de líderes mundiais, desta feita em Joanesburgo. Celebraremos também, em nosso país, a democracia, com a realização de eleições gerais. Coloco esses dois eventos lado a lado porque os temas tratados neste livro não dizem respeito apenas aos especialistas e sim ao debate e à participação da cidadania. São preocupações de toda a sociedade e de todos aqueles que desejam devotar-se às questões que afetam o bem-estar da população, no cotidiano e a longo prazo.
Os ensaios incluídos neste livro abordam os problemas associados ao uso predatório dos bens naturais e do meio ambiente, problemas que se vêm acumulando ao longo do tempo e que assumem importância crescente. Examinam, igualmente, questões relacionadas aos padrões de produção e consumo induzidos por um paradigma de desenvolvimento que sempre viu o meio natural como recurso inesgotável.
Impõe-se, nesse contexto, a tarefa de administrar esses desafios em uma era onde a interdependência dos Estados é uma realidade e os assuntos públicos são objeto da ação de múltiplos atores sociais. A abordagem dessa temática pelos autores não se reduz a um diagnóstico, mas abrange também o arcabouço conceitual e político necessário para identificar os problemas e para tomar medidas concretas para resolvê-los. Trata-se, portanto, de uma contribuição particularmente importante ao debate público, na medida em que nos ajuda a amadurecer uma visão de mundo que já não pode ser construída apenas segundo as percepções das sociedades nacionais, tomadas individualmente.
Essas premissas são o fundamento para a discussão do desenvolvimento sustentável, conceito articulado em suas múltiplas dimensões nos documentos aprovados por unanimidade pela comunidade internacional na Conferência do Rio. O desenvolvimento sustentável requer uma reflexão sobre os valores de cada sociedade e sobre as condições para que se produza uma mudança cultural, indispensável para que possamos legar às futuras gerações um mundo que lhes permita satisfazer com razoável autonomia suas necessidades.
A possibilidade das gerações futuras lidarem com os desafios que lhes serão postos está sendo condicionada por nossas próprias ações. Por outro lado, essas gerações deverão também preocupar-se com aquelas que lhes sucederão. Nessa sucessão da ordem natural da vida e do mundo, as necessidades e percepções se alteram. Contudo, é hoje certo que, apesar de nossa dificuldade em prever o futuro, se não estivermos imbuídos da idéia de uma solidariedade entre as gerações, o mundo que legaremos a nossos filhos e netos comportará mais interrogações do que possibilidades.
Para que isso não ocorra, exige-se uma mudança radical em nossa atitude, uma nova mentalidade que nos permita construir uma sociedade mais fraterna nos planos interno e internacional. A solidariedade é um elemento essencial para o desenvolvimento sustentável e para uma globalização que seja intrinsecamente integradora. A genuína solidariedade não se coaduna com a pobreza, que é em si insustentável. A sustentabilidade não terá raízes enquanto aqueles que gastam os recursos naturais ou utilizam os serviços ambientais em excesso não alterarem seus padrões de produção e consumo.
É preciso mudar usando de maneira inteligente os mecanismos de que dispõem as sociedades. Cumpre promover, por meio de uma adequada e moderna regulamentação das forças de mercado, uma produção competitiva de bens e serviços mais compatível com a capacidade de absorção dos ecossistemas. É preciso avaliar melhor e internalizar o valor dos recursos naturais e ambientais nos sistemas de preços. Mais do que adotar medidas econômicas ou estratégias de marketing, trata-se de dar um salto cultural tão importante como aquele que levou ao reconhecimento dos direitos sociais a partir das mobilizações populares no século XIX.
A transformação social é um processo político. Os temas abordados pela renomada equipe de pesquisadores do WWI-Worldwatch Institute no “Estado do Mundo 2002”, são aqueles que estarão presentes na agenda de discussões de Joanesburgo e que também fazem parte das preocupações da sociedade brasileira. A superposição de consciência ambiental e processos democráticos torna evidente que o estado do mundo não se restringe ao mundo do Estado, mas permeia toda a esfera pública compreendida como o entrelaçamento de diferentes estruturas sociais. A atuação dessas estruturas em rede, com o avanço da comunicação e do conhecimento, em um mundo cada vez mais plural, realça o profundo sentido ético do desenvolvimento sustentável. É a consciência desse sentido que traz ao primeiro plano do debate temas como o das responsabilidades diferenciadas para o alcance de objetivos comuns, ou como o da governança, que hoje abarca tanto as relações entre o público e o privado quanto as diferentes formas que essas esferas adquirem em diferentes culturas ou entre distintos grupos sociais numa mesma cultura.
Essas considerações me levam a sublinhar a relevância da publicação da edição brasileira do “Estado do Mundo”. Independentemente da avaliação que fizermos sobre as posições específicas adotadas pelos autores, o enriquecimento que elas trazem ao debate público sobre o desenvolvimento sustentável é, por si só, um evento auspicioso. É uma contribuição de relevo para que se fortaleça a consciência da necessidade de avançar na construção de um mundo melhor.